Histórias no Pote

by Michael W.

Photography Inga Freitas Photography

Numa manhã platinada, de brilhos brancos e opacos, partimos. A memória pregava-nos partidas. O Douro, na sua peculiaridade e diversidade, é todo igual. Uma curva não é diferente de curva seguinte, e um socalco não é diferente do socalco acima. A aldeias em nada se distinguem entre si nas suas dissonâncias coloridas, em contraste com os tons pardacentos que acentuam a monotonia do relevo. Enfim, é apenas natural existir alguma tristeza na honestidade das coisas.
“Um pouco mais à frente”, olhei pela janela e vi o longo dorso do Marão, e essa seria a única referência memorável naquele serpentear melancólico. Por fim, lá reencontrámos a entrada da Quinta do Estremadouro.
O vento soprava leve, mas num prenúncio outonal. A fachada da casa mantinha-se muda, de portas e janelas fechadas. Mais uma vez, a memória brincava. A casa parecia-me mais pequena e mais simples, e as árvores maiores e mais velhas.

Quinta Aneto Jantar

Fomos recebidos pela Sílvia, acompanhada dos filhos, “podem ir descendo que já lá vou ter”, enquanto se dirigia, atarefada, para uma das salas da casa. Descemos as escadas, toscas e estreitas, de corrimão macio, desgastado pelo gesto, em direcção à cozinha, onde encontrámos Francisco Montenegro. “Podem por as coisas aí em cima”, enquanto nos cumprimentávamos. Um cheiro intenso a lenha invadia a cozinha, vindo de um anexo, onde já se preparavam os potes. Seguiram-se os arranjos florais, a disposição da mesa no andar de cima, enquanto outros traziam batatas e cebolas da horta, folhas de videira da vinha, cortavam o pão e preparavam o queijo.

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Verão em Vila Real: entre o Douro e o Alvão

by Inga F. Photography: Inga Freitas Photography

Que seca! Dias chatos, longe da praia. Verão quer praia. Mas nós, por aqui, queremos ir dar um mergulho nas cascatas de água transparente e fresquinha. Queremos dar um passeio até lá, passar pela floresta, pedras e pedregulhos. Sentir o cheiro da terra seca e da hortelã pertinho dos riachos.  Querido Alvão! AlvãoAlvãoAlvãoAlvão Continuar a ler

“Diz-me o que comes…”

Camilo & Forster

lustração: Inga F.

by Michael W.

Em O Vinho do Porto: Processo d’uma Bestialidade Ingleza *, Sinval explicava a Camillo que “há uma só distinção que extrema o homem de todos os outros animais (…) A mentira. O homem é o único animal que mente”.

Na pena de Camillo, o famoso Barão de Forrester, num infame panfleto sobre a produção do vinho do Porto, e que provocou um “abalo intestinal no mercado de Londres”, acusa os lavradores Continuar a ler

Homens dentro de garrafas

by Manuela F.

Lembro-me de num jantar, num qualquer restaurante aqui no vilarejo, ter visto uma sequência de serigrafias alusivas ao trabalho árduo no Douro numa altura em que pouco ou nada se falava desta região, durante décadas esquecida: Esboços das vinhas, cacos, garrafas que rolavam pelas encostas, garrafas estas que no seu interior ao invés de vinho, continham homens carcomidos, desgastados e embrutecidos, com rostos sulcados de rugas. Tudo isto vi numa altura em que o Douro ainda não era Património Mundial da Humanidade e nas bancas de jornais não existiam revistas sobre vinhos, dessas que hoje são publicadas aos magotes, em que rios de tinta são gastos a falar do brilhantismo deste e daquele produtor, deste e daquele enólogo, de castas, da acidez dos vinhos, dos taninos e de restaurantes onde se associam néctares à Nouvelle Cuisine. Exaltam-se os chefs como se de estrelas de Hollywood se tratassem.

Obra do acaso, poucos anos mais tarde, fui trabalhar para um local onde se produz vinho desde o séc. XVII. Uvas desta e de outras quintas do Douro, são ainda hoje ali vinificadas. Misturam-se saberes ancestrais com novas técnicas de produção. Daí vermos os velhos lagares de granito ao lado de cubas de inox. Foi aqui que tomei contacto com o vinho e fiz a minha ligação às serigrafias que um dia vi num qualquer restaurante.

 por Nuno Castelo

Homens Garrafa III  de Nuno Castelo

Aneto Wines

by Michael W.

Seguíamos velozmente, naquele final de tarde invernal, o carro de Francisco Montenegro, que por vezes desaparecia pelo meio de reflexos ígneos de um sol mortiço para depois emergir no final de uma qualquer curva. Uma vez chegados às portas da quinta do Aneto, um cheiro a terra, levemente perfumado e adocicado, chegava de parte incerta, trazido pelo vento frio que entretanto despertara.

Chamou-nos a atenção uma velha casa imponente, de vista sobre o Rio Douro e o Marão, uma casa que, como tantas outras do género, seria espaço de histórias íntimas por contar. O nosso anfitrião em breve nos levaria a visitá-la, mas não sem primeiro passar pela adega. Mal podíamos adivinhar os aromas que nos acometeriam assim que atravessássemos as portas de vidro que davam acesso à adega. Continuar a ler